Uma biografia histórica: o filme “ The Young Victoria” e um bate papo com o roteirista Julian Fellows (contém spoilers)

No início de março fui assistir The Young Victoria, um filme sobre a juventude da rainha Victória e seu casamento com o príncipe Albert. Por ser uma biografia histórica, como um dos meus roteiros, eu quis ver como o roteirista Julian Fellows (Gosford Park, Vanity Fair) fez a adaptação dessa história tão conhecida dos britânicos.

Foi um evento especial: assisti ao filme antes de entrar em circuito nacional aqui no Reino Unido e, depois da projeção, tivemos uma sessão de perguntas e respostas com o Julian Fellows. O evento foi promovido pela Script Factory, que costuma fazer esse tipo de evento e convidar ex-alunos.

Não vou fazer uma crítica nem uma resenha do filme. Toda a minha atenção estava voltada para a forma como o Julian Fellows transpôs para a tela a biografia histórica de uma pessoa tão famosa e querida do público, que temas ele abordaria e como ele estruturaria o roteiro.

Não posso dizer que fiquei impressionadíssima com o filme, mas fiquei satisfeita. Acho que Julian definiu bem o escopo da estória: claro que não daria para contar a vida inteira da rainha Victória, afinal, foi um dos reinados mais longos da história da monarquia britânica – ela foi coroada com 18 anos e faleceu aos 80 e pouco. O filme foca as ameaças e dificuldades de Victória de criança até o início da juventude: uma jovem prestes a se tornar rainha de uma das nações mais poderosas do mundo e o início do seu relacionamento com o homem pelo qual ela era perdidamente apaixonada.

O filme começa com o momento da coroação, depois retorna pro passado e faz uma retrospectiva da vida dela desde menina. Depois de dar um panorama do que significava ser uma princesa na situação em que a monarquia britânica se encontrava – ela era a única herdeira e última descendente da família real, ou seja, se ela morresse a monarquia morreria com ela – a estória continua a progredir de forma a mostrar como essa menina se torna a mulher forte que tomará as rédeas da monarquia de forma bastante incisiva. Em termos de estrutura, achei o início interessante – trazendo a imagem da coroação antes da estória continuar seu curso de forma linear a partir da infância dela.

O que achei mais curioso foi a forma como o Julian Fellows mostrou a relação entre Victória e Albert. Em termos estritamente cinematográficos, para ressaltar a força de Victória e o fato de que ela era uma regente determinada e capaz, ele opta por apresentar o Albert quase como um personagem feminino. Não que se duvide da masculinidade dele hora nenhuma, mas o príncipe aparece em imagens onde se esperaria que a princesa fosse mostrada.

É bastante sutil e não sei se todo mundo vai concordar comigo, mas me lembro de algumas cenas onde isso pra mim ficou mais evidente: o momento em que é ele que corre da porta até a cama onde ela está deitada; numa outro momento, é Victória quem ativamente beija o príncipe e ele corresponde; é ele quem “apazigua” os ânimos na relação conflituosa entre Victória e a mãe; é ele quem traz o bebê e passa para as mãos dela.

Essa suave “inversão” de papéis num filme de época chamou a minha atenção e foi realizada de forma puramente cinematográfica. A “feminilidade” com o que o Albert é mostrado está na imagem e não no texto. E talvez simbolize o quão a posição dele, enquanto “consorte”, era realmente fraca em relação à posição dela de rainha.

Essa questão foi levantada de forma um pouco diferente durante a sessão de perguntas e respostas: se teria sido uma opção do roteirista retratar o príncipe quase como um personagem fraco. Eu não vi desse jeito, mas o Julian Fellows explicou que a posição do príncipe era quase a de um homem simbolicamente emasculado: ele não podia ser “ativo” em relação à ela – ele não podia, por exemplo, pedir a rainha em casamento; o pedido tinha que partir dela. E ele consegue mais tarde – tanto o personagem como a pessoa real – se colocar ao lado dela como um parceiro de igual para igual – tão capaz e inteligente quanto ela.

Mas não é sempre que a gente tem a oportunidade de ver esse tipo suave de “inversão” feminino x masculino no cinema.

Um outro elemento também me chamou a atenção: fiquei com a sensação de que o filme não tinha tido clímax. Depois me dei conta de que o “clímax” teria sido a cena do atentado. E o filme termina depois desse evento e de forma quase abrupta (embora não termine de repente): Victória se desfaz dos últimos laços da sua infância e reconhece a capacidade do Albert de ser um co-regente junto com ela.

Isso também foi levantado na sessão de perguntas e respostas. O Julian explicou que, para ele, o filme terminava depois do atentado, quando ela se dá conta de que o Albert é mais do que seu marido e o homem que ela amava; ele podia ser seu parceiro na regência do país. E que, depois desse momento – simbolizado na cena em que ela traz a mesa de trabalho dele pra junto da sua – a estória que ele queria contar estava terminada. Depois desse momento, todo mundo sabe como foi: eles tiveram 9 filhos, viveram felizes e apaixonados juntos, regeram o país juntos, e depois que ele morreu (prematuramente, aos 42 anos, de febre tifóide), ela passou a viver com menos exposição ao público.

O Julian explicou que, para ele, o fascinante da estória da rainha foi a ameaça que pairava sobre ela na infância sob o jugo de um padrasto violento, manipulador e mau-caráter que queria a todo custo que ela desse a ele (que era casado com a mãe dela) a regência do país enquanto ela fosse menor de idade. A despeito de todo abuso e tentativas de coerção, ela resistiu. É, de fato, extraordinário.

Em termos de adaptação de uma biografia histórica, acho que ele fez um trabalho fantástico ao trazer ao público detalhes da infância da rainha que são pouco conhecidos. E, também, as “mentiras” que ele precisou inventar para poder apresentar eventos que não aconteceram daquela forma na vida real. Uma biografia histórica sempre tem esse elemento.

No caso de Young Victoria, por exemplo, ele faz o príncipe Albert vir da Alemanha e passar um mês na corte britânica – coisa que nunca aconteceria na vida real, mas que era fundamental no contexto dramático do roteiro: não dava para ele estabelecer a relação apaixonada dos dois personagens por carta, como aconteceu na vida real.

Outro evento “inventado” foi o tiro que o príncipe leva. Na verdade, o atentado aconteceu mas o príncipe não se feriu. Segundo o Julian Fellows, ele optou por dar dramaticidade à cena e, para ele, embora o príncipe não tenha se ferido na vida real, ele de fato protegeu Victória com o próprio corpo. Se a pistola do atirador não tivesse falhado o Albert teria, de fato, levado um tiro nas costas ao proteger a rainha. Portanto, para o Julian, a cena é simbólica pois a intenção do Albert era de dar a própria vida para proteger a vida da mulher que ele amava.

Achei também uma boa escolha porque a cena nos remete à dor e ao desespero da Victória diante da possibilidade da morte do marido. Embora ele não morra no filme, dá pra viver com ela o quão ela deve ter sofrido quando o príncipe adoeceu. A fragilidade da situação dele no momento em que é trazido pra casa baleado nos faz imaginar o que ela deve ter vivido na doença e morte posteriores dele. Achei que foi uma solução inteligente que incorporou a “morte” sem colocar uma morte explícita na tela. Muito inteligente.

Além dessas explicações técnicas, é uma delícia ouvir o Julian Fellows falar. Ele é um sujeito simpático e acessível, que acolheu todas as perguntas e falou pelos cotovelos. Eu teria ficado a noite inteira ouvindo, numa boa. Perguntaram se ele tinha dado algum pitaco na escolha dos atores. Ele riu e disse, de forma bem humorada, que roteirista não dá pitaco em nada e que ele teve muita sorte de terem escolhido a Emily Blunt para fazer a Victória.

Ele disse que o roteirista é que nem a Sininho (do Peter Pan): as pessoas têm que acreditar muito, mas muito mesmo, pra que ele ou ela possam existir, que fará dar pitaco em alguma coisa do filme. Achei a observação hilária, mas muito pertinente – o roteirista costuma ser quase invisível dentro do contexto de uma produção como aquela. Ele disse que pôde passear pelos cenários deslumbrantes e amou a experiência do filme, mas deu menos “pitaco” do que quando escreveu Godsford Park, por exemplo, quando o diretor solicitava a presença dele no set e o trabalho foi de bastante colaboração.

É sempre gostoso ouvir os profissionais falando. Espero ter outras oportunidades como essa e não estar cansada demais para encarar a maratona de filme e depois debate após um dia de trabalho. Dei sorte também que o evento aconteceu num cinema perto da minha casa – se fosse longe não sei se eu teria encarado… 🙂

Meus artigos na TwelvePoint.com

Acabei de criar uma pagina nova no blog com os artigos que escrevi para a revista online especializada para roteiristas TwelvePoint.com, onde trabalho.

Adicionei os dois artigos que escrevi para eles. Ainda estao em ingles mas assim que eu tiver um tempo vou traduzi-los para portugues:

Script development – Issue 45, 16 March 2009 Monica Solon, a writer, attends the Script Factory’s workshop on script development where Kate Leys explains that development includes technical aspects of script analysis as well as managing the relationship with the writer to enable them to find solutions to the problems in the script.

What Hollywood can teach us in Europe – Issue 44, 5 January 2009 Monica Solon attends Doug Chamberlin’s Mastering Hollywood seminar.