Plot ou personagem?
Protagonista é o personagem principal da estória. Nenhuma novidade nisso. Ele ou ela ou coisa é quem move a ação. Eu sempre achei que existiam dois tipos de estória: as de personagem e as de situação. Aquelas do tipo James Bond, onde o personagem é tudo, ou as do tipo Independence Day, onde a invasão alienígena é o motivo da estória acontecer. Sim, acho que é mais ou menos assim mesmo, algumas são mais centradas nos personagens, outras na situação que gerou aquela estória.
Robert McKee diz, e eu gosto da definição dele, o seguinte:
“Não é possível perguntar qual é o mais importante, estrutura ou personagem, porque estrutura é personagem; personagem é estrutura. Eles são a mesma coisa, e portanto um não pode ser mais importante do que o outro.” (“We cannot ask which is more important, structure or character, because structure is character; character is structure. They’re the same thing, and therefore one cannot be more important than the other.” (p. 100)
É unanimidade em todos os livros que li – e na opinião dos professores – que a protagonista é a força motriz que impele a ação e ela é tão importante que todos os demais personagem existem exclusivamente para iluminar ou trazer à tona algum aspecto relevante da personalidade dela. Vou falar sobre personagens secundários em outro post mais adiante
Caracterização ou caráter?
McKee lembra, entretanto, que é importante diferenciar caracterização de personagem ou caráter.
Segundo ele, caracterização é “a soma de todas as qualidades observáveis de um ser humano, tudo que é possível de ser conhecido através de uma análise cuidadosa: idade, QI; sexo e sexualidade; jeito de falar e gestual; escolha de carro, casa, e roupas; educação e ocupação; personalidade e estado de nervos; valores e atitudes ou posicionamentos – todos os aspectos de humanidade que podemos conhecer fazendo anotações sobre alguém diariamente.” (“Characterization is the sum of all observable qualities of a human being, everything knowable through careful scrutiny: age and IQ; sex and sexuality; style of speech and gesture; choices of home, car, and dress; education and occupation; personality and nervosity; values and attitudes – all aspects of humanity we could know by taking notes on someone day in and day out.“) (pg. 100)
Isso não é tudo no personagem. Character pode ter duas traduções do inglês para o português: caráter e personagem. De certa forma, as duas traduções valem para a mesma coisa aqui, pois o verdadeiro caráter de um personagem, segundo McKee, “é revelado nas escolhas que um ser humano faz sob pressão – quanto mais pressão, mais profunda é a revelação, mais verdadeira para a essência do caráter do personagem é a escolha.” (“True character is revealed in the choices a human being makes under pressure – the greater the pressure, the deeper the revelation, the truer the choice to the character’s essential nature) (p. 101). E é isso o que revela a verdadeira natureza daquele personagem. E, ainda segundo McKee, pressão é a única forma de revelar essa natureza verdadeira – até porque, essa é a forma como a natureza humana se revela.
Um ou vários protagonistas
Ok, voltando à protagonista. Em geral, as estórias têm uma protagonista – mas existem estórias que têm mais de uma. No caso de uma ‘pluralidade de protagonistas’ (Plural-Protagonist), segundo McKee, sejam duas pessoas ou uma comunidade inteira (vila, cidade ou país, por exemplo) é que a motivação delas é a mesma. Ou seja, o desejo que impele a estória precisa ser comum a todos. Ele faz uma distinção, no entanto, entre isso e uma ‘multiplicidade de protagonistas’ (Multiprotagonist) (p. 136-137), onde mais de um protagonista atua em busca de objetivos diferentes e independentes. Em geral, as estórias com múltiplos protagonistas têm múltiplos plots. Robert Altman, por exemplo, era um cineasta que trabalhava muito com esse tipo de estória (Short Cuts é um exemplo).
É preciso ter cuidado, no entanto, ao trabalhar com múltiplos protagonistas. Os diferentes plots podem se perder e se tornar confusos. É preciso ter o objetivo da estória em si firmemente traçado e claro, ou os protagonistas não vão conseguir chegar a um final coerente. Manter o ‘fio da meada’ quando protagonistas têm objetivos diferentes é dificil. Em cinema, Altman é genial ao trabalhar com múltiplos protagonistas, mas suas estórias têm um único tema, uma única direção. Numa estória de aventura ou ação, mais de um protagonista que centralize o movimento da ação rumo à sua conclusão pode minar a força da estória.
Mas isso é mais verdade em roteiros do que em livros. Não é fácil, as é menos perigoso ter um livro com mais de um protagonista do que um filme, até porque o livro nos dá mais espaço e tempo para trabalhar as motivações e os desejos de cada um.
Alguns exemplos:
Em O Senhor dos Anéis, o protagonista é o Frodo e a missão é destruir o anel. Todos os demais personagens e todos os plots secundários existem para permitir que isso aconteça ou criar obstáculos para gerar pressão.
Simplificando: em X Men, os X Men do bem são uma pluralidade de protagonistas com um único objetivo: lutar contra os X Men do mal.
Em O Poderoso Chefão, o objetivo do Michael Corleone é proteger sua família, seja a que preço for. Ele faz isso de diversas formas, massacrando inimigos ou tentando legitimar o negócio e tirar a família da máfia. Ele tem uma motivação e um objetivo claros mas ao ele não consegue alcançar o que deseja – ao contrário, ele se torna aquilo que mais odeia.
Há debates, em filmes como Bonnie & Clyde ou Butch Cassidy & Sundance Kid, se há dois protagonistas. Tem gente que acha que são dois, tem gente que acha que apenas um é protagonista e outro existe para reforçar características do outro. Mas, em ambos os casos acima pelo menos, o objetivo dos dois é o mesmo.
Para quem tem menos experiência em escrever roteiros ou livros, o mais seguro é aprender e dominar a regra, depois partir para a exceção.
A força do desejo
Sejam um ou vários, o protagonista é sempre um personagem movido por um desejo. Pode até não ser lá um desejo intenso, mas é preciso que seja forte o suficiente para que ele possa transpor os conflitos e obstáculos da estória e, ainda segundo McKee, ‘gerar mudanças significativas e irreversíveis.’ Toda a regra, é claro, têm exceções e existem filmes e estórias em que o protagonista é totalmente passivo como em The Man Who Wasn’t There, dos irmãos Cohen.
Lajos Egri, em The Art of Dramatic Writing, afirma que um personagem fraco – isso se aplica particularmente ao protagonista – não tem como carregar o peso da transposição dos conflitos. Se ele não tem essa força, está descartado como protagonista (p. 80).
Segundo ele, “Não há esporte sem competição; não há peça sem conflito. Sem contraponto, não há harmonia. O dramaturgo precisa não apenas de personagens que tenham força de vontade para lutar por suas convicções. Ele precisa de personagens que tenham a força, a resistência, para levar a luta à sua conclusão lógica.” (“There is no sport if there is no competition; there is no play if there is no conflict. Without counterpoint, there is no harmony. The dramatist needs not only characters who are willing to put up a fight for their convictions. He needs characters who have the strength, the stamina, to carry this fight to its logical conclusion“) (p. 80)
E continua, mais adiante. “Veja todos os grandes dramas e vai descobrir que as personagens forçam as questões apresentadas até que sejam vencidas por elas ou alcancem seus objetivos.” (“Go through all great dramas and you will find that the characters in them force the issue in question until they are beaten or reach their goals.“) (p. 82)
Às vezes, o personagem parece fraco, mas não é. “O personagem realmente fraco é aquela pessoa que não luta porque a pressão não é forte o suficiente”, diz Egri. (pg. 84)
Em relação ao protagonista, mais especificamente, Egri é enfático:
“Sem o protagonista, não há peça. O protagonista é aquele que gera o conflito e faz com que a peça caminhe. O protagonista sabe o que quer. Sem ele a estória fica à deriva… de fato, não há estória.” (“Without the pivotal character there is no play. The pivotal character is the one who creates conflict and makes the play move forward. The pivotal character knows what he wants. Without him the story flounders… in fact, there is no story.“) (p. 110)
McKee é igualmente radical: “Uma estória não pode ser sobre um protagonista que não quer nada, que não toma decisões, cujas ações não produzem efeito em nenhum grau. O protagonista tem um desejo consciente (…), pode até ter um desejo contraditório, inconsciente (…), tem a capacidade de buscar esse Objeto do Desejo de forma convicente (…) e precisa ter ao menos a chance de obter seu desejo.” (“A story cannot be told about a protagonist who doesn’t want anything, who cannot make decisions, whose actions effect no change at any level. The protagonist has a conscious desire (…), may have a self-contradictory unconscious desire, (…) has the capacities to pursue the Object of Desire convincingly (…), must have at least a chance to attain his desire.” (p. 138-139)
A protagonisa não pode só querer algo. Tem que querer tanto que vai alcançar esse desejo a custa de se ‘auto-destruir’ ou ‘destruir’ o que quer que esteja no seu caminho. Segundo Egri, uma boa protagonista precisa ter alguma coisa vital em jogo. (p. 111). Egri é radical nesse aspecto: “um homem cujo medo é maior do que seu desejo, ou um homem que não tenha nenhuma paixão intensa, ou que seja paciente e não se oponha com vigor, não pode ser um protagonista.”
McKee concorda com ele e diz que o protagonista “precisa ter dentro de si mesmo a motivação da busca até o limite da experiência humana em profundidade e extensão, ou ambas, para alcançar uma mudança absoluta e irreversível.” (“He must have it within himself to pursue his desire to the boundaries of human experience in depth, broadth, or both, to reach absolute and irreversible change.” (p. 140)
É bem radical. Mas o fato é que o protagonista é a força motriz. Ele pode não querer ser essa força. Pode até lutar para sair dela, mas a ação acontece por causa do desejo dele de agir ou de resistir. Esse desejo precisa ser poderoso.
Por exemplo: o Michael Corleone, do Poderoso Chefão. No início da estória, ele não quer seguir os passos do pai. Na verdade, está decidido a não seguir os passos da família e ficar longe dela. Porém, quando ele se dá conta de que, para proteger aqueles que ama, ele vai ter que entrar no jogo, ele entra. Com tudo. Porém, o tempo todo, o Michael está tentando tirar a família da máfia, tentando legitimar os negócios. Quanto mais ele tenta, mais ele afunda. No final, não só ele não consegue sair como ele perde aquilo que fez ele entrar naquele esquema em primeiro lugar: a família.
Essa é a força do protagonista: para o bem ou para o mal, o desejo dele ou dela, move, impele, faz a ação progredir. Um protagonista sem vontade e sem conflito paraliza a estória e a ação fica à deriva. Como eu disse antes, regras têm exceção e os Cohens foram brilhantes na caracterização de um protagonista tão passivo que, quando ele quer assumir as rédeas, não acreditam nele.
Por isso, é fundamental entender qual é a motivação da protagonista, conhecer e revelar seu caráter – sob pressão, ela ataca ou recua, confronta ou negocia, é corajosa ou covarde? Não só é bom ter conflito e contradição – somos seres contraditórios – é ótimo. Nada tem que ser preto e branco, bom ou mau, mas tem que ter vontade. Quanto mais pressão, mais o caráter se revela, mais claro se torna o caminho em direção ao conflito final (o clímax da estória), onde o protagonista vai chegar num ‘ponto sem retorno’, vai tomar uma decisão definitiva e sem retorno, que provoca uma mudança permanente.
Depois eu vou falar mais sobre essa questão os ‘pontos sem retorno’ e mudanças permanentes. Segundo McKee, é fundamental que o protagonista tenha sofrido uma mudança significativa ao longo da estória. Ela não pode começar sendo uma coisa e terminar sendo exatamente a mesma coisa. Alguma coisa tem que ter mudado, para melhor ou pior. Michael Corleone começa um herói de guerra e termina um mafioso sem redenção que perdeu tudo o que mais amava na vida. Luke Skywalker começa um jovem inexperiente e termina um guerreiro Jedi que redimiu o pai (Darth Vader).
Pode começar positivo e terminar mais positivo, negativo e mais negativo, negativo e positivo ou positivo e negativo. Só não dá pra ser igual. Até porque ninguém passa incólume pela vida, toda experiência acrescenta, mesmo que a gente não se dê conta. A estória, em geral, é uma jornada que tem um objetivo. Um herói pode começar relutante e imaturo e pode terminar menos relutante e menos imaturo ou o contrário. Não pode é começar imaturo e terminar do mesmo jeito que começou – tem algo errado com a estória.
Isso, porém, também é mais verdade em cinema do que em livros, onde a liberdade literária é maior. No entanto, é bom ficar atenta pro tipo de estória que se está contando, seja em livro ou filme.
Isso é o básico do básico. Esse tema ‘protagonista’ é recorrente, quase inesgotável. Portanto, vai aparecer diversas vezes ao longo dos posts. Tem mais para falar sobre elas, mas não dá pra falar tudo de uma vez só.
Usei dois livros de referência nesse post:
. McKee, R., Story, Substance, Structure, Style, and the principles of screenwriting (London, 1999)
. Egri, L., The Art of Dramatic Writing (New York, 2004).