Oficina de Criação Literária de Virgínia Cavalcanti

Fico feliz em divulgar que a Casa da Gávea, no Rio de Janeiro, vai promover uma nova edição da Oficina de Criação Literária (Elementos básicos para escrever ficção), de Virgínia Cavalcanti, em março.

Participei da oficina em 2004 e o curso foi determinante na minha decisão de me tornar uma escritora profissional. A Virgínia foi o meu primeiro ponto de contato com uma abordagem que trata a escrita como algo que pode ser aprendido através de ferramentas, processos e técnicas – na tradição das graduações e mestrados em escrita criativa (creative writing) dos EUA e Europa. Concordo que talento não se ensina, mas acredito que a capacidade de criação literária do escritor pode se beneficiar do entendimento e utilização destas ferramentas, assim como em qualquer outra arte.

A minha experiência na oficina foi sensacional. Virgínia, que tem mestrado em creative writing nos Estados Unidos, traz elementos teóricos que são exercitados na prática. Durante as aulas, aprendi as noções básicas da escrita criativa e pude usá-las como ferramentas para pensar e estruturar melhor os meus textos. Além disso, ela é uma professora muito legal, atenta e generosa.

Alguns escritores temem que o contato com essas teorias, técnicas e ferramentas possam de alguma forma tolher a criatividade. Alguns temem que seus textos acabem engessados em um “molde” e se tornem artificiais. Eu, sinceramente, não acredito nisso. Pelo menos, não sinto que isso tenha acontecido na minha escrita. Sinto, ao contrário, que esse conhecimento me ajudou de diversas formas – conhecimento que aprofundei muito no mestrado que fiz três anos depois de participar da oficina da Virgínia – pois me permitiu:

. Ter uma visão mais crítica do meu texto e uma clareza maior da minha intenção em cada texto, livro ou roteiro.

. Fazer escolhas conscientes e entender por que quero escrever tal estória de tal forma; o que quero explorar e sob que ângulo; escolher as ferramentas mais adequadas para produzir o efeito que desejo atingir. Eu não fazia isso antes, ou seja, escrevia quase mecanicamente (intuitivamente). Isso não está errado, mas, para mim, às vezes, era muito frustrante, pois o efeito que eu desejava não se produzia ou eu me perdia em construções mirabolantes.

. Ampliar meu arsenal de ferramentas, tais como: construção de personagem, construção de mundo, ritmo, em que tempo quero escrever, em que pessoa (primeira pessoa, em terceira pessoa, etc), como quero estruturar a estória de forma a atingir o impacto ou o efeito desejado, trabalhar os diálogos, subverter uma determinada ‘regra’ e muitas mais.

. Trocar com outros escritores, expor meus textos, ouvir e contribuir. Todos estão ali com o mesmo sentimento: o prazer da escrita que pode levar ou não a uma carreira profissional. Por isso é importante ouvir as críticas e comentários da professora e dos colegas, sem medo ou excesso de zelo. Embora às vezes doa, uma crítica pode ser muito mais útil e construtiva do que um elogio. Querer ouvir que seu texto é bom é mais do que natural, mas fechar os ouvidos às críticas, a meu ver, é perder a oportunidade de descobrir e trabalhar suas falhas, vícios e fraquezas. A avaliação crítica positiva me ajuda a evitar minhas próprias armadilhas – tendências e hábitos que não necessariamente são parte da minha “voz” autoral, são a minha “zona de conforto” que às vezes se torna repetitiva e ineficiente.

Estes são apenas alguns exemplos. A experiência da Oficina da Virgínia me rendeu uma oportunidade de trabalho concreta: depois dela, por exemplo, me senti preparada para encarar o convite de escrever profissionalmente e – de certa forma, por encomenda – participar de um projeto da Editora Escala, em 2005. Eles queriam lançar uma série de romances de banca (tipo Sabrina) escritos por autoras brasileiras. Fui selecionada e escrevi três romances (dois foram publicados e o terceiro não, pois o projeto acabou – não dava pra competir com as editoras internacionais). Esses livrinhos estão disponíveis no blog Mônica de Miranda – meu pseudônimo nestas obras, pois na época fazia um trabalho na área social e não queria misturar as estações.

A Virgínia sempre frisava que a oficina não era para você ser publicada, ou seja, ninguém ia sair dali direto para as livrarias. A oficina era para te instrumentar e contribuir para o desenvolvimento do ofício de escrever. Vale muito à pena. Se você puder participar, não perca. Na época, eu estava desempregada e absolutamente dura. Me candidatei e consegui uma bolsa. Não é fácil, mas não é impossível. Mesmo que você tenha que pagar, acho que é um investimento valioso. Mais tarde, fiz um investimento ainda maior no meu mestrado na Inglaterra. Continuo ralando muito mas hoje me considero uma escritora profissional. E devo isso, de certa forma, também à Virgínia e à Casa da Gávea, a quem sou muito grata.

A oficina tem início em 21/03 e vai até 09/05, sempre às 2ª feiras, das 14:30 às 17:00. Mas, por favor, confirmem essas informações no site da Casa da Gávea. Como eu disse, eles oferecem algumas bolsas integrais.

Não perca essa oportunidade e depois me conta como foi.

Popcorn Fiction

There’s this great website, created by screenwriter Derek Haas, who has commissioned talented screenwriters to publish some truly great short stories – one of my favourites being “Tasting Menu” by Patton Oswalt.

In Derek’s words:

I wanted to create a place where new popular short fiction could flourish, and Hollywood could have a new resource for cultivating great ideas. Not every story is a crime or science fiction story, but each is infinitely readable.”

I’ve been following it from the start and have been reading some brilliant pieces there.

You can subscribe and Derek will let you know when the latest story is available.

Take a look: http://popcornfiction.com/

You probably know about this website already but, if you don’t, hope you enjoy it too.

*

Tem um website incrível, criado pelo roteirista Derek Hass, que chamou alguns roteiristas talentosos para publicar no site alguns contos sensacionais – um dos meus favoritos é “Tasting Menu” por Patton Oswalt.

Nas palavras de Derek:

Eu queria criar um espaço onde novos contos populares pudessem florescer e Hollywood pudesse ter uma nova fonte para cultivar grandes idéias. Nem toda estória é crime ou ficção científica mas cada uma delas é infinitamente boa de ler.”

Venho acompanhando o site desde o início e tenho lido alguns textos brilhantes.

Você pode assinar e Derek vai te manter atualizado sempre que uma nova estória estiver disponível.

Dê uma olhada: http://popcornfiction.com/ – o site é em inglês.

Você provavelmente já conhece esse site, mas se ainda não teve oportunidade de conhecer, espero que goste também.

Another precious hint from John August / Mais uma dica preciosa de John August

John shared another hint in his blog that is a precious idea. He says:

Burn down the house

“As the writer, you need to burn down houses. You need to push characters out of their safe places into the big scary world — and make sure they can never get back. Sure, their stated quest might be to get home, but your job is to make sure that wherever they end up is a new and different place.”

Keep reading the post, it’s valuable advice. It applies mostly to scripts but it’s useful to think about it also when you’re writing fiction in general.

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John compartilhou mais uma dica no seu blog. É o que ele chama de “Burn down the house” – a tradução literal é “Queimar a casa” mas eu diria que o significado se aproxima mais de “Botar a casa abaixo”. Este post se aplica mais a roteiros, mas serve também para algumas formas de ficção.

No trecho acima ele diz: “Como escritor, você precisa derrubar casas. Precisa expulsar os personagens das suas zonas de conforto em direção ao mundo assustador – e garantir que eles não possam retornar nunca mais. Claro que a busca estabelecida deles pode ser chegar em casa, mas seu trabalho é garantir que, qualquer que seja o lugar onde eles terminem, seja um lugar novo e diferente.”

No post, para quem não lê em inglês, ele continua explicando que escritores tendem a ser benevolentes com seus personagens e que é difícil, às vezes, aceitar que eles sejam privados de tudo. Não importa em que gênero, é necessário retirá-los da redoma da normalidade.

O Fogo é uma das formas de “inciting incident” (o incidente que tira o protagonista da normalidade e inicia a trama), John nos lembra. Em Guerra nas Estrelas, Luke volta pra casa e encontra sua família dizimada pelas forças do Império em um incêndio. Na verdade, este “fogo” ou “destruição” podem ser simbólicos – qualquer coisa que impeça o retorno à mesma normalidade de antes. Por exemplo, em Gladiador, a família do Russell Crowe é assassinada. Isso quer dizer que o protagonista, mesmo que volte para casa – ou para um normalidade restabelecida – não será exatamente para o mesmo lugar.

John propõe o seguinte exercício: examine seus roteiros e verifique o que pode ser ‘queimado’ e porquê você não queimou.

Personagens em livros infantis – Heróis e Vilões

Queria falar um pouco sobre construção de personagens em livros para crianças ou adolescentes. Estou trabalhando uma estória para jovens adultos e tive ontem uma aula sobre heróis e vilões, que geralmente são os personagens mais proeminentes na literatura infantil ou juvenil. Essas reflexões são fruto de uma aula de Fantastic Fiction, levantadas pela nossa professora e escritora Judith Anderson. Na verdade, fizemos mais uma reflexão sobre quais os atributos que esperamos encontrar nos heróis ou vilões e quais as perguntas que podemos nos fazer quando pensamos os nossos ‘heróis’ e ‘vilões’.

Heróis

Em geral, o herói ou heroína da estória é o ou a protagonista. Atualmente, é comum encontrar protagonistas como heróis relutantes, humanos, com defeitos que precisam ser superados. Ela/ele precisa lutar contra conflitos e obstáculos internos e externos. Mas também é comum que o herói tenha atributos positivos: força, coragem, capacidade de superar os obstáculos propostos, além de alguma coisa que o torna único (não necessariamente um super poder, pode ser uma característica de personalidade) – embora ele seja ‘gente como a gente’ muitas vezes, as crianças e adolescentes o vêem como alguém que inspira, que realiza algo que eles desejariam realizar ou ter a capacidade de superar um obstáculo da forma como ele supera. Uma heroína (ou herói) normalmente é persistente e corajosa – mas não é uma coragem ‘cega’, a coragem precisa vir de uma capacidade de entender e equacionar o problema de forma inteligente. Afinal, o leitor é, muitas vezes, mais inteligente e perspicaz que o escritor, e o problema precisa ser realmente desafiador. Descobrir as habilidades e desenvolvê-las também faz parte da ‘construção’ do herói – hoje o herói não nasce pronto, ele se torna um herói… 

Será que tem alguma ‘regra’ na construção desse personagem? E os anti-heróis, tipo Artemis Fowl? O livro Deconstructing the Hero, de M.  Hourihan, fala da predominância dos heróis jovens rapazes, brancos e ocidentais, que lutam contra o ‘estrangeiro’ do mal. Essa tendência tem diminuido e já vemos heróis subvertendo essa tendência. Porém, eles ainda são bastante comuns – basta ver os filmes no cinema. É interessante ver como os heróis atuais são um pouco mais ambíguos do que antigamente, que precisam superar as suas próprias dúvidas e conflitos. Suas habilidades são, ao mesmo tempo, ordinárias e extraordinárias. Os heróis, no final da estória, sempre (ou quase sempre) sacrificam alguma coisa muito importante para eles próprios, fazer uma escolha crucial – escolher o menor entre dois males.

Vilões

Nessa aula, a reflexão também girou em torno dessa figura e da necessidade da existência do vilão ou vilã na estória como uma forma de lidar com os nossos próprios lados obscuros. Muitas vezes, o vilão ou a vilã também funcionam como os portadores das mensagens do tipo: isso é o que acontece com aquelas pessoas que fazem escolhas equivocadas. Não tem certo ou errado nessas construções, mas é interessante pensar, quando escolhemos a função do vilão nas nossas estórias, o que estamos querendo dizer com elas. Em geral, eles têm algo no passado que os fez se tornarem antagonistas ou maus. Ou talvez eles tenham feito escolhas ruins, que os levaram para ‘os caminhos errados’. Existe, nesse caso, uma opção ‘moral’ e é bom quando podemos colocar esse elemento – ou não – de forma consciente no nosso texto. Os monstros, geralmente, são maus por natureza (é a natureza de um monstro ser um monstro, afinal – embora, nem sempre… quem viu o filme Monsters & Cia, sabe que eles podem ser adoráveis). De novo, há uma tendência a caracterizar o vilão como um estrangeiro, alguém com alguma questão física, uma pequena (ou grande) deformidade física que se reflete no caráter e é importante ter cuidado com isso. Na minha opinião pessoal, o importante é estar consciente desta caracterização e que função ela tem dentro do contexto da estória. Afinal, o vilão existe, a grosso modo, para ressaltar as qualidades do herói e permitir que o herói seja heróico… Mas aquelas velhas questões do politicamente correto ainda se aplicam: a bela e magra heroína, a velha e feia bruxa, o gordinho engraçado, o estrangeiro perigoso, o branco como o símbolo do bom, o preto como símbolo do mal… reproduzimos, muitas vezes, sem nos darmos conta, os mesmos estereótipos. O problema não é usar o estereótipo, é escolher conscientemente quais estereótipos queremos usar e quais desejamos questionar ou subverter. Os vilões em geral têm um olhar frio, uma expressão dura ou uma falta de expressão ou de emoção, são vaidosos, se vestem bem, mas são demasiadamente preocupados com a própria aparência, e muito interessados em poder e riqueza. São manipuladores, desonestos, mas espertos. Em geral, ocupam alguma posição de podem em relação ao herói.As crianças respondem a esses vilões, mas será que existem outras formas de caracterizá-los? Os melhores vilões, pra mim, são aqueles que conhecem as fraquezas da heroína (ou do herói), aqueles que ameaçam não só fisicamente, mas psicologicamente também.

Mas a representação destas forças antagônicas não são só humanas e não necessariamente más em si mesmas. Podem ser outras ameaças a serem superadas: uma doença, um fenômeno da natureza, um momento difícil, por exemplo. Nestes casos, é interessante pensar quais são as oposições possíveis. E existem os personagens moralmente ambíguos, como o Lord Asriel de Northern Lights, e o Snape, de Harry Potter. Interessante…

Falar de personagem continua dando panos pra manga e volta e meia vou voltar a esse assunto.

Protagonista

Plot ou personagem?

Protagonista é o personagem principal da estória. Nenhuma novidade nisso. Ele ou ela ou coisa é quem move a ação. Eu sempre achei que existiam dois tipos de estória: as de personagem e as de situação. Aquelas do tipo James Bond, onde o personagem é tudo, ou as do tipo Independence Day, onde a invasão alienígena é o motivo da estória acontecer. Sim, acho que é mais ou menos assim mesmo, algumas são mais centradas nos personagens, outras na situação que gerou aquela estória.

Robert McKee diz, e eu gosto da definição dele, o seguinte:

“Não é possível perguntar qual é o mais importante, estrutura ou personagem, porque estrutura é personagem; personagem é estrutura. Eles são a mesma coisa, e portanto um não pode ser mais importante do que o outro.” (“We cannot ask which is more important, structure or character, because structure is character; character is structure. They’re the same thing, and therefore one cannot be more important than the other.” (p. 100)

É unanimidade em todos os livros que li – e na opinião dos professores – que a protagonista é a força motriz que impele a ação e ela é tão importante que todos os demais personagem existem exclusivamente para iluminar ou trazer à tona algum aspecto relevante da personalidade dela. Vou falar sobre personagens secundários em outro post mais adiante

Caracterização ou caráter?

McKee lembra, entretanto, que é importante diferenciar caracterização de personagem ou caráter.

Segundo ele, caracterização é “a soma de todas as qualidades observáveis de um ser humano, tudo que é possível de ser conhecido através de uma análise cuidadosa: idade, QI; sexo e sexualidade; jeito de falar e gestual; escolha de carro, casa, e roupas; educação e ocupação; personalidade e estado de nervos; valores e atitudes ou posicionamentos – todos os aspectos de humanidade que podemos conhecer fazendo anotações sobre alguém diariamente.” (“Characterization is the sum of all observable qualities of a human being, everything knowable through careful scrutiny: age and IQ; sex and sexuality; style of speech and gesture; choices of home, car, and dress; education and occupation; personality and nervosity; values and attitudes – all aspects of humanity we could know by taking notes on someone day in and day out.“) (pg. 100)

Isso não é tudo no personagem. Character pode ter duas traduções do inglês para o português: caráter e personagem. De certa forma, as duas traduções valem para a mesma coisa aqui, pois o verdadeiro caráter de um personagem, segundo McKee, “é revelado nas escolhas que um ser humano faz sob pressão – quanto mais pressão, mais profunda é a revelação, mais verdadeira para a essência do caráter do personagem é a escolha.” (“True character is revealed in the choices a human being makes under pressure – the greater the pressure, the deeper the revelation, the truer the choice to the character’s essential nature) (p. 101). E é isso o que revela a verdadeira natureza daquele personagem. E, ainda segundo McKee, pressão é a única forma de revelar essa natureza verdadeira – até porque, essa é a forma como a natureza humana se revela.

Um ou vários protagonistas

Ok, voltando à protagonista. Em geral, as estórias têm uma protagonista – mas existem estórias que têm mais de uma. No caso de uma ‘pluralidade de protagonistas’ (Plural-Protagonist), segundo McKee, sejam duas pessoas ou uma comunidade inteira (vila, cidade ou país, por exemplo) é que a motivação delas é a mesma. Ou seja, o desejo que impele a estória precisa ser comum a todos. Ele faz uma distinção, no entanto, entre isso e uma ‘multiplicidade de protagonistas’ (Multiprotagonist) (p. 136-137), onde mais de um protagonista atua em busca de objetivos diferentes e independentes. Em geral, as estórias com múltiplos protagonistas têm múltiplos plots. Robert Altman, por exemplo, era um cineasta que trabalhava muito com esse tipo de estória (Short Cuts é um exemplo).

É preciso ter cuidado, no entanto, ao trabalhar com múltiplos protagonistas. Os diferentes plots podem se perder e se tornar confusos. É preciso ter o objetivo da estória em si firmemente traçado e claro, ou os protagonistas não vão conseguir chegar a um final coerente. Manter o ‘fio da meada’ quando protagonistas têm objetivos diferentes é dificil. Em cinema, Altman é genial ao trabalhar com múltiplos protagonistas, mas suas estórias têm um único tema, uma única direção. Numa estória de aventura ou ação, mais de um protagonista que centralize o movimento da ação rumo à sua conclusão pode minar a força da estória.

Mas isso é mais verdade em roteiros do que em livros. Não é fácil, as é menos perigoso ter um livro com mais de um protagonista do que um filme, até porque o livro nos dá mais espaço e tempo para trabalhar as motivações e os desejos de cada um.

Alguns exemplos:

Em O Senhor dos Anéis, o protagonista é o Frodo e a missão é destruir o anel. Todos os demais personagens e todos os plots secundários existem para permitir que isso aconteça ou criar obstáculos para gerar pressão.

Simplificando: em X Men, os X Men do bem são uma pluralidade de protagonistas com um único objetivo: lutar contra os X Men do mal.

Em O Poderoso Chefão, o objetivo do Michael Corleone é proteger sua família, seja a que preço for. Ele faz isso de diversas formas, massacrando inimigos ou tentando legitimar o negócio e tirar a família da máfia. Ele tem uma motivação e um objetivo claros mas ao ele não consegue alcançar o que deseja – ao contrário, ele se torna aquilo que mais odeia.

Há debates, em filmes como Bonnie & Clyde ou Butch Cassidy & Sundance Kid, se há dois protagonistas. Tem gente que acha que são dois, tem gente que acha que apenas um é protagonista e outro existe para reforçar características do outro. Mas, em ambos os casos acima pelo menos, o objetivo dos dois é o mesmo.

Para quem tem menos experiência em escrever roteiros ou livros, o mais seguro é aprender e dominar a regra, depois partir para a exceção.

A força do desejo

Sejam um ou vários, o protagonista é sempre um personagem movido por um desejo. Pode até não ser lá um desejo intenso, mas é preciso que seja forte o suficiente para que ele possa transpor os conflitos e obstáculos da estória e, ainda segundo McKee, ‘gerar mudanças significativas e irreversíveis.’ Toda a regra, é claro, têm exceções e existem filmes e estórias em que o protagonista é totalmente passivo como em The Man Who Wasn’t There, dos irmãos Cohen.

Lajos Egri, em The Art of Dramatic Writing, afirma que um personagem fraco – isso se aplica particularmente ao protagonista – não tem como carregar o peso da transposição dos conflitos. Se ele não tem essa força, está descartado como protagonista (p. 80).

Segundo ele, “Não há esporte sem competição; não há peça sem conflito. Sem contraponto, não há harmonia. O dramaturgo precisa não apenas de personagens que tenham força de vontade para lutar por suas convicções. Ele precisa de personagens que tenham a força, a resistência, para levar a luta à sua conclusão lógica.” (“There is no sport if there is no competition; there is no play if there is no conflict. Without counterpoint, there is no harmony. The dramatist needs not only characters who are willing to put up a fight for their convictions. He needs characters who have the strength, the stamina, to carry this fight to its logical conclusion“) (p. 80)

E continua, mais adiante. “Veja todos os grandes dramas e vai descobrir que as personagens forçam as questões apresentadas até que sejam vencidas por elas ou alcancem seus objetivos.” (“Go through all great dramas and you will find that the characters in them force the issue in question until they are beaten or reach their goals.“) (p. 82)

Às vezes, o personagem parece fraco, mas não é. “O personagem realmente fraco é aquela pessoa que não luta porque a pressão não é forte o suficiente”, diz Egri. (pg. 84)

Em relação ao protagonista, mais especificamente, Egri é enfático:

“Sem o protagonista, não há peça. O protagonista é aquele que gera o conflito e faz com que a peça caminhe. O protagonista sabe o que quer. Sem ele a estória fica à deriva… de fato, não há estória.” (“Without the pivotal character there is no play. The pivotal character is the one who creates conflict and makes the play move forward. The pivotal character knows what he wants. Without him the story flounders… in fact, there is no story.“) (p. 110)

McKee é igualmente radical: “Uma estória não pode ser sobre um protagonista que não quer nada, que não toma decisões, cujas ações não produzem efeito em nenhum grau. O protagonista tem um desejo consciente (…), pode até ter um desejo contraditório, inconsciente (…), tem a capacidade de buscar esse Objeto do Desejo de forma convicente (…) e precisa ter ao menos a chance de obter seu desejo.” (“A story cannot be told about a protagonist who doesn’t want anything, who cannot make decisions, whose actions effect no change at any level. The protagonist has a conscious desire (…), may have a self-contradictory unconscious desire, (…) has the capacities to pursue the Object of Desire convincingly (…), must have at least a chance to attain his desire.” (p. 138-139)

A protagonisa não pode só querer algo. Tem que querer tanto que vai alcançar esse desejo a custa de se ‘auto-destruir’ ou ‘destruir’ o que quer que esteja no seu caminho. Segundo Egri, uma boa protagonista precisa ter alguma coisa vital em jogo. (p. 111). Egri é radical nesse aspecto: “um homem cujo medo é maior do que seu desejo, ou um homem que não tenha nenhuma paixão intensa, ou que seja paciente e não se oponha com vigor, não pode ser um protagonista.”

McKee concorda com ele e diz que o protagonista “precisa ter dentro de si mesmo a motivação da busca até o limite da experiência humana em profundidade e extensão, ou ambas, para alcançar uma mudança absoluta e irreversível.” (“He must have it within himself to pursue his desire to the boundaries of human experience in depth, broadth, or both, to reach absolute and irreversible change.” (p. 140)

É bem radical. Mas o fato é que o protagonista é a força motriz. Ele pode não querer ser essa força. Pode até lutar para sair dela, mas a ação acontece por causa do desejo dele de agir ou de resistir. Esse desejo precisa ser poderoso.

Por exemplo: o Michael Corleone, do Poderoso Chefão. No início da estória, ele não quer seguir os passos do pai. Na verdade, está decidido a não seguir os passos da família e ficar longe dela. Porém, quando ele se dá conta de que, para proteger aqueles que ama, ele vai ter que entrar no jogo, ele entra. Com tudo. Porém, o tempo todo, o Michael está tentando tirar a família da máfia, tentando legitimar os negócios. Quanto mais ele tenta, mais ele afunda. No final, não só ele não consegue sair como ele perde aquilo que fez ele entrar naquele esquema em primeiro lugar: a família.

Essa é a força do protagonista: para o bem ou para o mal, o desejo dele ou dela, move, impele, faz a ação progredir. Um protagonista sem vontade e sem conflito paraliza a estória e a ação fica à deriva. Como eu disse antes, regras têm exceção e os Cohens foram brilhantes na caracterização de um protagonista tão passivo que, quando ele quer assumir as rédeas, não acreditam nele.

Por isso, é fundamental entender qual é a motivação da protagonista, conhecer e revelar seu caráter – sob pressão, ela ataca ou recua, confronta ou negocia, é corajosa ou covarde? Não só é bom ter conflito e contradição – somos seres contraditórios – é ótimo. Nada tem que ser preto e branco, bom ou mau, mas tem que ter vontade. Quanto mais pressão, mais o caráter se revela, mais claro se torna o caminho em direção ao conflito final (o clímax da estória), onde o protagonista vai chegar num ‘ponto sem retorno’, vai tomar uma decisão definitiva e sem retorno, que provoca uma mudança permanente.

Depois eu vou falar mais sobre essa questão os ‘pontos sem retorno’ e mudanças permanentes. Segundo McKee, é fundamental que o protagonista tenha sofrido uma mudança significativa ao longo da estória. Ela não pode começar sendo uma coisa e terminar sendo exatamente a mesma coisa. Alguma coisa tem que ter mudado, para melhor ou pior. Michael Corleone começa um herói de guerra e termina um mafioso sem redenção que perdeu tudo o que mais amava na vida. Luke Skywalker começa um jovem inexperiente e termina um guerreiro Jedi que redimiu o pai (Darth Vader).

Pode começar positivo e terminar mais positivo, negativo e mais negativo, negativo e positivo ou positivo e negativo. Só não dá pra ser igual. Até porque ninguém passa incólume pela vida, toda experiência acrescenta, mesmo que a gente não se dê conta. A estória, em geral, é uma jornada que tem um objetivo. Um herói pode começar relutante e imaturo e pode terminar menos relutante e menos imaturo ou o contrário. Não pode é começar imaturo e terminar do mesmo jeito que começou – tem algo errado com a estória.

Isso, porém, também é mais verdade em cinema do que em livros, onde a liberdade literária é maior. No entanto, é bom ficar atenta pro tipo de estória que se está contando, seja em livro ou filme.

Isso é o básico do básico. Esse tema ‘protagonista’ é recorrente, quase inesgotável. Portanto, vai aparecer diversas vezes ao longo dos posts. Tem mais para falar sobre elas, mas não dá pra falar tudo de uma vez só.

Usei dois livros de referência nesse post:

. McKee, R., Story, Substance, Structure, Style, and the principles of screenwriting (London, 1999)

. Egri, L., The Art of Dramatic Writing (New York, 2004).